domingo, 13 de outubro de 2013

Para lá de Ebulição...

 
Há longo tempo escrevi um texto intitulado "Entre Banho Maria e Ponto de Ebulição", a propósito de um contexto diferente, mas já na altura percepcionando como era verdadeiro para um genérico de situações da vida. Hoje, poderia replicá-lo, embora, neste momento, pareçamos andar todos já para lá do ponto de ebulição.













 
 
 


A verdade é que já fervemos e nos estamos a evaporar...e não nos parecemos importar em dizer um "Basta!". A nossa humanidade abandona-nos a cada dia e parecemos muito tranquilos com isso. Corremos e nos atropelamos...Perdão, trucidamo-nos, digo!...

E não nos escondamos atrás de "crises"... através das quais agora, já despudoradamente, nos desresponsabilizamos e inocentamos de uma completa falta de valores e pobre mentalidade de há anos!
 
Já nada conta, apenas o "Eu" e o "Eu" e o "Eu"...e a aparência do "Eu" perante os mortais insignificantes que rodeiam:

- Não nos levantamos nos transportes para deixar sentar alguém mais velho, porque também nós estamos cansados e porque o lugar em que estamos não é o prioritário a grávidas, deficientes e pessoas com crianças de colo e ser mais velho não está em nenhuma destas categorias, mesmo que essas pessoas tenham ganho as suas hérnias discais a carregarem-nos ao colo ou a trabalharem duro para nos darem tudo o que precisávamos e o que pedíamos e não precisávamos;

- Não agradecemos, porque alguém só fez a sua obrigação;

- Não estacionamos o carro onde existem efectivos lugares de estacionamento, mas sim onde dá jeito, porque onde queremos ir é "mesmo aqui", ligamos os "4 piscas" que é "só um instantinho", "quem quiser consegue passar" (mesmo que tenha de fazer mil manobras), "se não conseguir apita e espera um bocadinho",...e se fôr uma ambulância ou um carro dos bombeiros apitam e depois "vamos tirar" (porque quem está à espera de socorro não somos nós nem ninguém da nossa família... até ao dia em que fôr!). Para além disso, deixar o carro bem estacionado e andar 200 metros pode afrontar o nosso excesso de peso ou obesidade ou dificultar aguentar o dia inteiro nos nossos maravilhosos saltos de agulha de 15 cm que nos custaram um balúrdio (mas, são o último grito, e, portanto, não faz mal que os andemos a pagar até ao final do mês!);

- Num passeio estreito não nos colocamos em fila indiana para toda a gente conseguir passar nem nos desviamos para deixar passar alguém mais velho, porque não somos "menos do que ninguém" e "quem disse que isso é falta de educação".
Aliás, vimos "nós", traumatizados adolescentes de 14 anos, a ocupar o passeio todo, a descer da escola para que os nossos pais e avós andam a contribuir e onde andamos a querer aprender coisa nenhuma e ainda tínhamos de nos desviar para deixar passar "a velhota, de bengala, com o saco das compras"..."daqui pouco ainda nos dizem que devíamos ajudar a velha a levar as compras"... "era o que faltava...,porque isso é trabalho infantil". Contudo, não perguntem a estes adolescentes o que é "mentecapto", porque eles não vão saber e a culpa é dos professores que não ensinam ou dos pais que não lhes deram um "smartphone" para eles poderem ir ver ao "Google";

- Colocamos defeitos e destratamos o trabalho dos outros, porque os outros fizeram algo e reconhecer o seu esforço não é normal, normal seria talvez que não fizessem nada e nada haveria para reclamar;

- Não gostamos que aumentem o IVA da restauração, mas não é porque isso estrangula o consumo e não podemos sobreviver a isso e iremos ter de despedir pessoal, é porque "agora vou ter menos luxos, porque inventaram este aumento do IVA e ainda por cima temos de passar facturas e declarar o que recebemos... é uma chatice termos de pagar impostos de tudo o que recebemos e para manter a margem de lucro vamos ter de deixar de descontar para a Segurança Social da D. Maria da cozinha", mas não temos coragem de o dizer;

- Não gostamos que nos aumentem os impostos, mas o nosso foco não é por irmos viver pior, é porque estamos a "descontar" para as pensões dos "velhos, que descontaram pouco", porque ganhavam menos num mês do que podíamos conceber gastar em meio-dia, esses velhos analfabetos que ajudaram a construir as maternidades onde nascemos, os hospitais onde fomos tratados, as escolas onde estudámos e que agora queremos deixar ao abandono e que também eles, sem saberem como nem por onde, vão sofrer cortes onde já nada há para cortar (porque restrições foi o que conheceram toda a vida);

- Reclamamos, pais e mães jovens de filhos que esperamos que o sistema sustente, dos cortes nos rendimentos pelos quais nunca trabalhámos e de tudo o resto que temos, porque sempre tivemos mais sem ter de "mexer uma palha" para isso;

- Não sorrimos, porque "não somos palhaços" e "não há nada de que sorrir";

- Ofendemos quem nos diz "não", porque achamos que temos direito a tudo em resultado de nenhum dever;

- Não ajudamos, porque não temos tempo, ou porque alguém o há-de fazer por nós.

- Humilhamos, pisoteamos, descremos... só porque sim ou porque isso nos ludribia com um qualquer sentimento de superioridade falsa e mesquinha;
 

E esta lista continuaria até à exaustão...

...E não nos escondamos atrás de "crises"... através das quais agora, já despudoradamente, nos desresponsabilizamos e inocentamos de uma completa falta de valores e pobre mentalidade de há anos!

E...para lá do ponto de ebulição...
Cada vez mais num estado de irritação permanente.
Porque a nossa natureza já nos traz, à partida, num ponto próximo disto. Porque a saturação dos dias e do ambiente assim o desencadeiam, instalam ou fomentam. Porque algo ou alguém nos puxa e empurra para isso insistentemente. Porque o passar do tempo não se compadece com os nossos esforços, fazendo com que numa sequência indeterminada de dias se acumulem rasteiras e quedas, farpas e punhais. Porque o simples sopro ou o exuberante guincho das vozes demasiadamente mesquinho, vil, desagradável, duro, gélido ou injusto. Porque sabemos lá.
Porque tudo isto, andamos num acumular paulatino e num estado alimentado de irritação, ou alheamos os nossos sentidos e nada aconteceu ou, contraem-se os músculos, latejam as têmporas, acelera o coração, cria-se um aperto no peito que impele gritos e palavras irrascíveis ou de razão, de apaziguamento ou de irritação, que se formam na garganta, percorre o corpo um calor, a força do que se conhece e se sente ser injusto, inverosímel ou do que se sabe ser dolorosamente verdadeiro faz o cérebro trabalhar a mil e desdobrar-se em argumentos, desenrola-se por segundos, minutos ou horas uma luta entre tudo o que esse mesmo cérebro processa, entre o que deseja e o que julga ponderado, e entre o que os gritos formados na garganta ameaçam fazer-nos vociferar, guarda-se na memória, gera-se uma irreprimível vontade de mudança.

E tudo isto dói, tudo isto cansa!
Tudo isto exige libertação, acção e gritos de mudança. E perante isso, jamais revoguemos a nossa natureza humana e uma postura pro-activa.

E não nos escondamos atrás de "crises"... através das quais agora, já despudoradamente, nos desresponsabilizamos e inocentamos de uma completa falta de valores e pobre mentalidade de há anos!...

...E, para lá do ponto de ebulição... que só acalmará com um "Basta", uma mentalidade renovada e fresca e um forte sopro de humanidade..., que onde pairam não sei!




Sophia