domingo, 6 de novembro de 2016

A Condição Humana a Viva Voz

 
Vozes de Chernobyl é, muito provavelmente, um dos melhores livros que já li.
 
Num novo estilo literário que aprimorou, Svetlana Alexievich intrinca de forma irrepreensível excertos de centenas de testemunhos reais, montando uma história coerente e coesa sobre uma das maiores catástrofes do nosso tempo, diferente de tudo o que conhecíamos sob esse nome e golpe derradeiro para a ex-União Soviética.
Este livro traz-nos um choque de realidade. De forma intensa, crua, densa, impactante e humana Svetlana Alexievich conduz-nos por uma viagem que nos leva a tomar consciência de como podem ser frágeis as nossas concepções de vida, de como pode ser surpreendente o espírito humano e de como a fé, os ideais, o desconhecido, a catástrofe e o amor, podem operar transformações tão profundas e inimagináveis na vida de cada um e de um Povo e na percepção da condição humana.
 
Como disse, muito provavelmente, um dos melhores que já li.



Sophia

domingo, 19 de outubro de 2014

Para onde vamos

A vida é rica em acontecimentos e lições, basta estarmos atentos. Eles preenchem-nos de emoções e controem todo o filme que se segue, ininterruptamente.
Mesmo que não estejamos focados e que não nos apercebamos disso, a vida ensina-nos e avança...No caso de nos distrairmos, ela encarrega-se de nos fazer cair o gelado em cima dos jeans lavados, de alguém nos desiludir ou trair, de um desconhecido nos dar um encontrão ao sair apressado do autocarro, de alguém quase nos atropelar na passadeira, de nos encandear com um pôr-do-sol magnífico enquanto conduzimos pela estrada de sempre, de nos fazer duvidar...e nessa altura, olhar de novo, com atenção redobrada para o que já lá estava!
É uma forma salutar de não permitir que a deixemos passar em branco.
Andamos, corremos, ziguezagueamos, avançamos e recuamos, vimos e vamos, cumprimentamos sem parar, seguimos adiante, deixamos passar onde devíamos ter virado, não ligamos hoje que não temos tempo, amanhã talvez seja dia, pensamos, empenhamo-nos...não temos tempo, queremos mais, sempre mais, sem parecermos perceber que o mais é menos...
Pára uns minutos, observa à tua volta...aprende com cada acontecimento, absorve cada acontecimento...vê o bom e o mau, identifica a lealdade e a mesquinhez, a beleza e a fealdade, apercebe-te de cada coisa que te acontece, vê que rico és, mas,...não te iludas, não te deixes apanhar em repetições! Faz dessas coisas a mudança em ti e nos outros.
Segue e observa!
Não pares, mas, também não deixes de observar...porque as lições de hoje, farão melhor o filme de amanhã!



Sophia

domingo, 13 de outubro de 2013

Para lá de Ebulição...

 
Há longo tempo escrevi um texto intitulado "Entre Banho Maria e Ponto de Ebulição", a propósito de um contexto diferente, mas já na altura percepcionando como era verdadeiro para um genérico de situações da vida. Hoje, poderia replicá-lo, embora, neste momento, pareçamos andar todos já para lá do ponto de ebulição.













 
 
 


A verdade é que já fervemos e nos estamos a evaporar...e não nos parecemos importar em dizer um "Basta!". A nossa humanidade abandona-nos a cada dia e parecemos muito tranquilos com isso. Corremos e nos atropelamos...Perdão, trucidamo-nos, digo!...

E não nos escondamos atrás de "crises"... através das quais agora, já despudoradamente, nos desresponsabilizamos e inocentamos de uma completa falta de valores e pobre mentalidade de há anos!
 
Já nada conta, apenas o "Eu" e o "Eu" e o "Eu"...e a aparência do "Eu" perante os mortais insignificantes que rodeiam:

- Não nos levantamos nos transportes para deixar sentar alguém mais velho, porque também nós estamos cansados e porque o lugar em que estamos não é o prioritário a grávidas, deficientes e pessoas com crianças de colo e ser mais velho não está em nenhuma destas categorias, mesmo que essas pessoas tenham ganho as suas hérnias discais a carregarem-nos ao colo ou a trabalharem duro para nos darem tudo o que precisávamos e o que pedíamos e não precisávamos;

- Não agradecemos, porque alguém só fez a sua obrigação;

- Não estacionamos o carro onde existem efectivos lugares de estacionamento, mas sim onde dá jeito, porque onde queremos ir é "mesmo aqui", ligamos os "4 piscas" que é "só um instantinho", "quem quiser consegue passar" (mesmo que tenha de fazer mil manobras), "se não conseguir apita e espera um bocadinho",...e se fôr uma ambulância ou um carro dos bombeiros apitam e depois "vamos tirar" (porque quem está à espera de socorro não somos nós nem ninguém da nossa família... até ao dia em que fôr!). Para além disso, deixar o carro bem estacionado e andar 200 metros pode afrontar o nosso excesso de peso ou obesidade ou dificultar aguentar o dia inteiro nos nossos maravilhosos saltos de agulha de 15 cm que nos custaram um balúrdio (mas, são o último grito, e, portanto, não faz mal que os andemos a pagar até ao final do mês!);

- Num passeio estreito não nos colocamos em fila indiana para toda a gente conseguir passar nem nos desviamos para deixar passar alguém mais velho, porque não somos "menos do que ninguém" e "quem disse que isso é falta de educação".
Aliás, vimos "nós", traumatizados adolescentes de 14 anos, a ocupar o passeio todo, a descer da escola para que os nossos pais e avós andam a contribuir e onde andamos a querer aprender coisa nenhuma e ainda tínhamos de nos desviar para deixar passar "a velhota, de bengala, com o saco das compras"..."daqui pouco ainda nos dizem que devíamos ajudar a velha a levar as compras"... "era o que faltava...,porque isso é trabalho infantil". Contudo, não perguntem a estes adolescentes o que é "mentecapto", porque eles não vão saber e a culpa é dos professores que não ensinam ou dos pais que não lhes deram um "smartphone" para eles poderem ir ver ao "Google";

- Colocamos defeitos e destratamos o trabalho dos outros, porque os outros fizeram algo e reconhecer o seu esforço não é normal, normal seria talvez que não fizessem nada e nada haveria para reclamar;

- Não gostamos que aumentem o IVA da restauração, mas não é porque isso estrangula o consumo e não podemos sobreviver a isso e iremos ter de despedir pessoal, é porque "agora vou ter menos luxos, porque inventaram este aumento do IVA e ainda por cima temos de passar facturas e declarar o que recebemos... é uma chatice termos de pagar impostos de tudo o que recebemos e para manter a margem de lucro vamos ter de deixar de descontar para a Segurança Social da D. Maria da cozinha", mas não temos coragem de o dizer;

- Não gostamos que nos aumentem os impostos, mas o nosso foco não é por irmos viver pior, é porque estamos a "descontar" para as pensões dos "velhos, que descontaram pouco", porque ganhavam menos num mês do que podíamos conceber gastar em meio-dia, esses velhos analfabetos que ajudaram a construir as maternidades onde nascemos, os hospitais onde fomos tratados, as escolas onde estudámos e que agora queremos deixar ao abandono e que também eles, sem saberem como nem por onde, vão sofrer cortes onde já nada há para cortar (porque restrições foi o que conheceram toda a vida);

- Reclamamos, pais e mães jovens de filhos que esperamos que o sistema sustente, dos cortes nos rendimentos pelos quais nunca trabalhámos e de tudo o resto que temos, porque sempre tivemos mais sem ter de "mexer uma palha" para isso;

- Não sorrimos, porque "não somos palhaços" e "não há nada de que sorrir";

- Ofendemos quem nos diz "não", porque achamos que temos direito a tudo em resultado de nenhum dever;

- Não ajudamos, porque não temos tempo, ou porque alguém o há-de fazer por nós.

- Humilhamos, pisoteamos, descremos... só porque sim ou porque isso nos ludribia com um qualquer sentimento de superioridade falsa e mesquinha;
 

E esta lista continuaria até à exaustão...

...E não nos escondamos atrás de "crises"... através das quais agora, já despudoradamente, nos desresponsabilizamos e inocentamos de uma completa falta de valores e pobre mentalidade de há anos!

E...para lá do ponto de ebulição...
Cada vez mais num estado de irritação permanente.
Porque a nossa natureza já nos traz, à partida, num ponto próximo disto. Porque a saturação dos dias e do ambiente assim o desencadeiam, instalam ou fomentam. Porque algo ou alguém nos puxa e empurra para isso insistentemente. Porque o passar do tempo não se compadece com os nossos esforços, fazendo com que numa sequência indeterminada de dias se acumulem rasteiras e quedas, farpas e punhais. Porque o simples sopro ou o exuberante guincho das vozes demasiadamente mesquinho, vil, desagradável, duro, gélido ou injusto. Porque sabemos lá.
Porque tudo isto, andamos num acumular paulatino e num estado alimentado de irritação, ou alheamos os nossos sentidos e nada aconteceu ou, contraem-se os músculos, latejam as têmporas, acelera o coração, cria-se um aperto no peito que impele gritos e palavras irrascíveis ou de razão, de apaziguamento ou de irritação, que se formam na garganta, percorre o corpo um calor, a força do que se conhece e se sente ser injusto, inverosímel ou do que se sabe ser dolorosamente verdadeiro faz o cérebro trabalhar a mil e desdobrar-se em argumentos, desenrola-se por segundos, minutos ou horas uma luta entre tudo o que esse mesmo cérebro processa, entre o que deseja e o que julga ponderado, e entre o que os gritos formados na garganta ameaçam fazer-nos vociferar, guarda-se na memória, gera-se uma irreprimível vontade de mudança.

E tudo isto dói, tudo isto cansa!
Tudo isto exige libertação, acção e gritos de mudança. E perante isso, jamais revoguemos a nossa natureza humana e uma postura pro-activa.

E não nos escondamos atrás de "crises"... através das quais agora, já despudoradamente, nos desresponsabilizamos e inocentamos de uma completa falta de valores e pobre mentalidade de há anos!...

...E, para lá do ponto de ebulição... que só acalmará com um "Basta", uma mentalidade renovada e fresca e um forte sopro de humanidade..., que onde pairam não sei!




Sophia

sábado, 21 de setembro de 2013

Tempo


E assim é...que por onde andas não sei, corres e corro mais, que não te alcanço, sempre nesta luta incessante, cansativa, desafiante, entusiasmante, vão-se quebrando os elos que se apartam e excruciante o som de páginas que amarrotas, das horas, dias, meses que se viram e não tornam nesta luta empenhada de único sentido, que nos intermeios nada mais se permitiu.


"Tempo — definição da angústia.
Pudesse ao menos eu agrilhoar-te
Ao coração pulsátil dum poema!
Era o devir eterno em harmonia.
Mas foges das vogais, como a frescura
Da tinta com que escrevo.
Fica apenas a tua negra sombra:
— O passado,
Amargura maior, fotografada.

Tempo...
E não haver nada,
Ninguém,
Uma alma penada
Que estrangule a ampulheta duma vez!

Que realize o crime e a perfeição
De cortar aquele fio movediço
De areia
Que nenhum tecelão
É capaz de tecer na sua teia! "

(Miguel Torga, in 'Cântico do Homem')




Sophia

quarta-feira, 21 de março de 2012

Mestria

Porque para além de ser o primeiro dia da Primavera, o dia Mundial da Árvore, o dia Mundial da Infância, o dia Mundial do Sono, este é também o dia Universal do Teatro, o dia Internacional contra a discriminação racial e o dia Mundial da Poesia, assim ficam os versos de um mestre plural e intemporal do jogo das palavras:

"Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a Humanidade.


E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.


Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.


Quem sabe quem os terá?
Quem sabe a que mãos irão?


Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.


Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.


Passo e fico, como o Universo."

(Alberto Caeiro)




Sophia

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Construindo um palácio

"Têm de estudar e aprender para serem vocês a tirarem as vossas conclusões sobre a História, mas não podem decidir nada se tiverem a cabeça vazia. Apetrechem a vossa cabeça, apetrechem a vossa cabeça. É a vossa arca do tesouro e ninguém no mundo pode interferir com o que vai lá dentro. Se ganhassem a lotaria irlandesa e comprassem uma casa por mobilar, enchiam-na de lixo!? A vossa mente é a vossa casa, e, se a encherem com as porcarias que vêem no cinema, vai acabar por apodrecer. Podem ser pobres, podem ter os sapatos rotos, mas, a vossa mente ser um palácio.”

(Frank McCourt, in As Cinzas de Ângela)


 
Sophia

terça-feira, 25 de outubro de 2011

A Nova Linguagem da Medicina

"Durante os nossos primeiros anos na Faculdade de Medicina, passámos horas a fio a aprender novas palavras, memorizando vocabulário como se estivéssemos a estudar uma língua estrangeira. Descobrimos que algumas palavras que soavam estrangeiras representavam, na realidade, coisas banais e familiares: parotidite era papeira e prurido significava comichão. Hoje, damos por nós a aprender uma nova linguagem da Medicina repleta de palavras que nos parecem familiares, mas que acabamos por percepcionar como se fossem estrangeiras. Os doentes já não são doentes, mas sim clientes ou consumidores. Os médicos e enfermeiros transformaram-se em prestadores (de serviços de saúde). Estes descritivos têm vindo a ser cada vez mais largamente adoptados, quer pelos media, quer por publicações médicas, e, até mesmo, em jornadas ou reuniões científicas."