quarta-feira, 19 de março de 2008

Crónica de Um Eu Incompleto

Do fundo dos seus gritos sem significado, para nós, do fundo das suas palavras repetidas, como um eco inacabável, do fundo dos seus, por aí, 9 anos, o seu “eu”, que, provavelmente, não sabia distrinçar, misturava-se com os outros. Tão depressa o seu “eu” era eu, como era a menina, como era a tia, como eram os outros, mas, o seu “eu” nunca terá sido, certamente, um eu. Duvido que tivesse consciência de si na totalidade, quer como pessoa individual, quer como pessoa inserida num grupo.
E teria culpa por isso!?
Não creio.
Do fundo do "atraso", da oligofrenia, ou da demência que possuía, os seus gritos e repetições eram a comunicação que conhecia, por algo que aleatoriamente lhe calhara e de que não tinha culpa.
Todavia, a um dos gritos da menina, repreendido com aspereza pela tia, alguém, uns bancos atrás, profundamente incomodado e indignado refila:
O que é isto?
Outro alguém responde:
É uma menina que tem um atraso qualquer.
O primeiro alguém riposta: Não é justificação!
Incomoda um pouco é certo, mas é inaceitável tamanha incompreensão e não resisto a pensar:
Quem é que aqui tem o atraso afinal!?
A menina continua. A tia, impaciente e aborrecida, ralha e manda-a calar.
A menina continua. A tia bate e ralha, chama-a mal-educada e explica-lhe que deve estar sossegada.
A menina grita, chora, continua. A tia replica que para a próxima não a vai buscar a não sei quantos quilómetros de distância.
A menina tem um "atraso", pelo qual não tem culpa. A tia é humana e perdeu a paciência, por um amor enorme que, no entanto, não lhe permite mudar o curso das coisas.
A menina, depois de algum silêncio, solta um «Desculpa», em repetição, como muitas das suas palavras. A tia retoma a sua calma, retira da mochila um livro infantil, e com toda a paciência do mundo, em contraste com minutos antes, lê a estória em conjunto com a menina.
O primeiro alguém, por esta altura, já não estava presente, havia mudado de carruagem. (Coitado! Triste!).
A menina está agora sossegada, embrenhada, com a tia, na sua estória.
Atrás de mim, dois jovens, aparentemente normais, que parecem ter consciência de si como ser individual, mas não como ser em sociedade, fazem barulho, soltam “guinchos”, fazem batuque nos bancos, gozam com não sei quem, etc...
Mais uma vez, assola-me o pensamento:
Quem é que aqui tem o atraso afinal!?
A menina está sossegada. Do fundo do seu “eu” incompleto, apenas semi-consciente, mostra uma compreensão de ternura e dos outros muito superior à destes alguéns, supostamente, de QI normal.
E, neste quadro, neste contexto, neste momento, sou forçada a sentir que o que é mais triste é o "atraso" dos outros (que não sabem valorizar e aproveitar o facto de terem nascido, aleatoriamente, completos) e não o da menina...
A estória termina. A menina está calma e sossegada.
Os gritos voltam. A menina grita e chora. A tia ralha e manda-a estar sossegada.
A menina continua a gritar. A tia bate, ralha, pergunta o que ela quer, o que lhe fizeram para não estar sossegada.
A menina grita, repete palavras suas e de outros. A tia repreende, bate, ordena-lhe que se porte bem, diz-lhe que não volta a ir buscá-la para passar o fim-de-semana consigo e que no dia seguinte ficará de castigo.
A menina segue com os gritos, grita para a tia. A tia já não responde, enterra a cara nas mãos, em silêncio, num desespero de quem não sabe lidar com a condição que lhe calhou.
A menina grita. A tia vira a cara para o lado.
A menina pára. A tia enterra a cara nas mãos novamente.
A menina diz suavemente:
Desculpa!... Desculpa!...Não volto a portar-me mal!...Desculpa, está bem?...
A tia permanece muda, com a cara coberta pelas mãos.
A menina vira-se, sem gritos, na minha direcção. Olha para mim e eu sorrio-lhe. Ela retribui-me o sorriso e envia-me um beijo. Devolvo-lhe outro beijo e ela sorri de novo, sem gritos. Fica a observar-me enquanto escrevo e falo ao telefone durante um tempo. Depois, volta-se de novo para a tia, agora mais calma.
A viagem prossegue. A menina está mais sossegada, soltando apenas um grito aqui e ali e olhando e sorrindo para mim de quando em vez, ao que retribuo.
A minha viagem termina. Para mim, foi um episódio isolado, que, eventualmente, se esbaterá com o tempo, mas, para aquela menina e para a sua tia, foi mais um de muitos dias, de uma realidade que já vivem há vários anos e continuarão a viver, de uma luta diária que irão continuar a travar consigo e com os "alguéns" que por aí andam, de uma consciência incompleta que, a cada dia, cria barreiras e põe à prova os laços e o amor que envolvem aquela criança, de si e para si.


Sophia
Em viagem, 16 de Março de 2008

1 comentário:

Casimiro disse...

Como quase tudo na vida, é "só" uma questão de relatividade...